através da caixinha dos convencimentos, pela idade, acomodado,
vou recordando passado,
bocados doutros tempos, sardinha assada, reino dos santos populares,
época antoniana em Lisboa...
tão ladina, tão cretina, de mãos dadas, saloiada
que frui espaço, desembestada...
entoa quadras pelos ares, alecrins que são afagados, ecoam pregões, há fumo que convida,
foliões, ruelas enfeitadas,
excesso de vida na subida, copo que se empina,
gargalhada que foge dum grupo mais disperso,
ruído de música, um verso...
voz que entoa fado, sentados numa mesa rudimentar,
mais compacto, espécie de jogo, pacto,
para trás das costas adversidades, risos alarves, pícaros, devassos,
naquele pátio, no reverso...
no ângulo que se franqueia, no cotovelo, lânguidos olhares, desvelo,
da janela, lá em cima, grita a vizinha,
olhos d´outrora...
coração que lembra, alma que chora,
bailarico que se forma, idoso que se entorna,
face rosada de quem bebe, de quem gosta, de quem ferve,
bonita verve,
prosápia delambida do alfacinha, tão amigo... do peito,
sem tostão, tão direito, quase perfeito,
pela avenida, já desfilam, na usança dos trajes que fizeram,
marcha que avança, recua, rodopia, grupos de bairros mais modestos,
antigos, tão modernos...
malta nova que recupera, integra nos costumes,
tradição que lhes agrada,
não cansa, não enfada...
despique que levam de feição perante forças vivas da urbe,
autarca que se refastela, rodeado...
por estrelas fugazes que se repimpam, ali ao lado,
bonequinho que se tira, se mostra na caixinha dos convencimentos,
pela idade, acomodado...
recordação que me vem, quando soldado,
ali para a Ajuda, recém-chegado da guerra, na Paz que me foi concedida,
rectaguarda da papelada, já perdida,
de vencida...
não livre, sem cuidado, lagostins que degustava na altura,
alguns trocos que tinha, televisão do preto e branco,
ditadura bem firme, bem segura...
olhar que apreciava tudo o que dali vinha, vontade que se formou,
avassalou...
não conteve, eléctrico que tomei até ao Terreiro do Paço, passos que dei até à Avenida,
multidão com que deparei, vou ser franco,
novidade portanto...
naquela harmonia da descoberta, satisfação,
desfile carregado de emoção,
ilusão... tenra idade,
rapaz ainda, fardado, espírito livre,
realidade que se afasta tão depressa, de quem viu, ainda vê, vive...
anos passados, contratempos,
alegrias, desgostos...
fruta propíciadora de bons momentos,
amarguras próprias de qualquer percurso, caras novas, outros rostos,
encontros, desencontros...
livre de hábito que nunca me assentou,
mau soldado por vocação,
fui no bote como qualquer um...
dei o nó, casei, família nova que se formou,
sorriso, satisfação, preso voluntário, doce prisão,
familia com outros ares, mais alargada, obrigações de casal nubente,
pouca prática, pouca gente...
que frui, que sente, que busca repente num rompante, asas ao vento, algum espavento refreado
por vencimento curto,
acautelado...
indo às mais francas, baratinhas... festas de rua, antoninas,
na Lisboa que curti sofregamente, nas festas de bairros meus, não sendo, não estando,
não morando...
partilhando santo brincalhão, casamenteiro,
convidado do POVO, como POVO,
ainda novo,
calcorreando ruas inclinadas, bebendo tinto, comendo sardinha assada com pão,
acariciando manjerico cheiroso,
ouvindo pregão...
rindo com gosto, sendo folião, como outros, mais um, quase foleiro,
assistindo à união colectiva na Sé... acto que, agora com patrocínio,
se celebra sem fé,
oportunidade de brilhar, tradição,
vai crescendo, em declínio, situação de quem não tem, mais aquém,
sem vintém,
se sujeita, ajeita... aproveita,
tanto enlevo na cara de quem vê, mulher que assiste, recorda,
se posta, aprecia, gosta...
revê,
mais velha, matrona feia, mais gorda, fila primeira da plateia
que enxameia...
se aquieta,
quando passa na ruela, entra no templo sob acordes da nupcial,
tal e qual...
a preceito, papoilas brancas que planam, pares bem metidos no papel, expostos,
palmas que aclamam, pétalas, arroz aos molhos,
a granel,
farturas dum dia que se compra, naquela igreja maior como montra,
espectáculo de quem precisa,
perspectiva...
risonha dum futuro, auxílio,
passo de fortuna... de exílio,
acomodado, perante caixa dos convencimentos,
recordo pedaços do meu passado, como soldado na Ajuda,
disfarçado, sem vocação, alguns cuidados...
escape, quase fuga, mais tarde, com família reduzida, já casado,
populares alturas, com santos, com sardinhas na rua,
pregões...
manjericos, ocasiões,
folganças, casório na Sé, pãezinhos antoninos, antoniano patrocínio,
penúria, algum declínio...
tradição que se mantém, mais além,
mais aquém,
regozijo da populaça, na ruela, na travessa, na praça,
pertinho do castelo...
com zelo!!!... Sherpas!!!...